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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

Cabeça em paz

19/10/2019 - Sorocaba - SP

O recanto de todo o artista reside na mente em inspiração. Um esconderijo perfeito para subjetivar as observações de esferas não ditas, daquelas que transformamos em verbo pelo simples fato de não conseguir canalizar para algo diferente do agora. 

Todas as nuances de prescrição me denotam a uma alegoria difuso de significados jogados ao vento, que me enternecem à medida que imagino as possibilidades de transdução ao que anseio ofertar como sentido. Em minhas palavras, reside o medo do escuro e a necessidade do abismo. Uma existência de luz que se entoa nas moradas claras dos versos que conversam com as águas, correndo, com a chuva, como se fossem amigos de infância a descobrir as memórias do que já viveram.

Nossas profusões sinestésicas transitam pelos vales das passagens que se inauguram em nossas redomas. Um universo de memórias latentes em poesia, disfarçando uma existência camuflada sempre que é questionada sobre o que sentir. Para mim, os poetas são filhos de um tempo que não está à disposição. Uma capacidade enaltecida de recuperar histórias que se fazem valer pelas sinapses das invenções, mostrando a quem quiser ver as metáforas de tudo o que, outrora, pareceu valer.

Meus contos transcrevem nomes em forma de suspiros, colocando à margem todas as passagens que, impossível de se ajustarem de outra forma, auxiliam apenas a continuidade da caminhada que, invariavelmente, segue para lados diferentes. O amor pelas estações é a certeza quase sussurrada de uma obra que nunca termina. Sou uma transeunte das passagens, sempre a acenar para as oportunidades de mais um texto. Mais uma clave de poesia em meio aos céus nublados de uma capital que me provocava saudosismos no alto da infância.

Meus corredores largos e comprimidos de pensamento sempre foram capazes de cocriar as manifestações de um agora a ser inventado. Sem necessariamente estar, sempre fui capaz de sentir as emoções de uma possibilidade inerente a toda e qualquer situação. No fundo, somos coparticipantes de todas as invenções, plenamente habilitados a expressar, nos formatos mais inconstantes possíveis, as interpretações quartas de quem, um dia, pensou entender alguma coisa.

A informação primária, para o poeta, é a mentira secular das estações. Não há possibilidade de ouvir outro barulho senão daquele que rememora os gritos de saudade a todas as temperaturas de existir. Nossas moradas equivalem aos ventos do tempo, que se reconfiguram à medida que permitimos as janelas abertas a quem quer que seja. 

No fundo, não há outra magistrutura senão daqueles que ouvem a autarquia dos assustados. As premonições das orquestras dos pássaros que, em toda e qualquer ocasião, nos presenteiam com sons dignos de um ginásio a ovacionar pela simplicidade de quem, genuinamente, entendeu tudo.

Ontem, ao levantar para fazer o café amargo de todas as manhãs, sorri para a janela invadida pelas folhas sem resistência ao vento. Morando nos subterfúgios dos sopros vindos sabe-se lá de onde, fui capaz de inaugurar as mesmas camuflagens de um tempo remoto de puro saudosismo e clemência ao que não foi.

São assim os passos do que parece não ser, à medida em que se estabelecem, vívidos, os mesmos anseios das vozes desconhecidas pelos contextos. Sortudos aqueles que enxergam, na imansidão dos barulhos em silêncio, qualquer compostura capaz de interpolar o que há de genuíno nas criações sem pretensão.

Sou a despretensão nascida em todos os olhos dispostos a ver o que não deixo à mostra. Os sorrisos de canto de boca e os carinhos amanhecidos por dedos preguiçosos, exalando a simplicidade de um aconchego à beira de ombros sonolentos. Sou de manhãs recém chegadas, a torcer pelo esquecimento dos tilintares cronológicos que tudo esvaem na cabeça dos que não conseguem viver a eternidade de cada momento.

Não há outro jeito de ser tudo o que se é senão pela coragem de deixar de ser tudo aquilo que, um dia, se pensou criar em si. A subjetivação dos passos respeita o tom das novidades sublimadas em tardes baixas de dias nublados. A informação de que o sol sempre se põe sendo suficiente para acreditar que, embora não vistas, há coisas que sempre estão lá.

No amontoado dos roteiros transformados em poesia, encontro o caos necessário para inventar, a cada partitura encontrada, a ordem de que preciso para configurar os dias que vêm. Sem pressa e com a cabeça em paz, tenho enaltecido os momentos de silêncio para reencontrar, nas memórias que existem, a ordem sincrônica.

 

THIANE ÁVILA.

 

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